— Ele era um bebê.
— Mas isso é um absurdo!
— Não, não é. O Filho de Deus veio ao mundo como um frágil bebezinho.O idoso, com semblante enrugado e dorso curvado, deslizou a mão pela barba hirsuta, pigarreou e, por fim, assentiu.
— Pois bem, isso não é difícil de entender. Até nosso Hércules veio ao mundo como um bebê.O homem que trazia a nova franziu o cenho. Era simples, um caixeiro viajante cingido com uma túnica que cobria até metade das canelas, deixando à mostra os pés calçados com sandálias de couro.
— Não se ofenda, mas devo discordar. Há muita diferença.A contradição pareceu despertar a curiosidade do idoso, que endireitou-se em seu assento de mármore e ajeitou a toga branca que lhe caía do ombro.
— Diferente como?Medindo as palavras, o viajante procurou uma forma de expor seu pensamento sem ofender o ancião, ao mesmo tempo em que tentava não se colocar em uma armadilha.
— Em suas histórias, como o caso de Hércules… — Cuidou para não usar a palavra “lenda”. — Zeus trai a esposa e gera um bastardo. — Fez uma pausa, mas a palavra não pareceu ofender o ouvinte. Era apenas um fato. — E esse bebê nasceu cheio de poder e força. Matou serpentes ainda no berço!O idoso sorriu, quase como um pai orgulhoso do próprio filho, e disse:
— Sim, que herói, não é mesmo? É desse tipo de coisa que precisamos!O viajante engoliu seco, pensando que havia se perdido em suas próprias palavras.
— Pois bem… — prosseguiu. — Acontece que Cristo era um bebê completamente comum, sem asas, raios ou superpoderes. Seu nascimento é puro; sua mãe era virgem e não conheceu nenhum homem para engravidar.— E como pode um bebê nascer dessa forma? — perguntou o idoso, quase zombando.
— É por isso que o nascimento de Cristo é um milagre maior do que o de Hércules. O poder do meu Deus faz com que mulheres estéreis dêem à luz tanto quanto mulheres grávidas.Ao dizer isso, o viajante sentiu que havia conquistado a admiração do ouvinte idoso. Para um homem místico como aquele, seria inegável a possibilidade de ocorrências sobrenaturais.
— Está dizendo que seu Deus é mais poderoso que o meu Zeus?! — O idoso exclamou, surpreso, mas não ofendido.
— Isso é algo que você deve concluir. Estou apenas narrando os fatos. Prosseguindo… Outra grande diferença: o meu Jesus, apesar de nascer de maneira milagrosa, era um bebê tão comum quanto qualquer outro. Nasceu em um berço de palha, em uma noite fria e escura, provavelmente em meados de outubro, frágil, chorando, com fome e frio, como qualquer recém-nascido.O idoso ponderou em silêncio, fechando os olhos como se tentasse imaginar ou fazer uma prece silenciosa.
— O Rei do Universo, prometido desde o princípio, veio à Terra sem coroa, sem trono e sem cetro. Uma simples criança como tantas outras.— Mas certamente ele rapidamente se tornou poderoso, não é mesmo? — A voz rouca e trêmula do ancião começava a ganhar força conforme ele se envolvia na história.
— Não da forma como você esperaria. Na verdade, ninguém esperava que fosse daquela forma. Antes de seu nascimento, profetizaram que ele seria O Maravilhoso Conselheiro, Deus Forte, Pai da Eternidade e Príncipe da Paz. Esperávamos ver um homem em armadura, com braços largos e peitoral de rocha, portando uma espada reluzente e destruindo todos os inimigos. A infância dele é esquecida, pouco relevante para nós, provavelmente cheia de brinquedos de madeira e joelhos ralados. Só prestamos atenção quando começou a ganhar muitos seguidores por seus discursos.— Ah, sim. Isso é admirável em um líder: boa dicção e discursos acalorados. Lá em cima, nossa Ágora1 está cheia de bons faladores que cativam a muitos — disse o idoso, apontando para a janela, de onde se avistava uma grande colina com um prédio de grandes colunas no topo. — O que ele queria com esses discursos, levantar um exército?
— De maneira alguma. Jesus nunca pegou em armas, nunca matou um homem.
— E como ele esperava conquistar o trono?
— Com amor.O idoso parecia ter chegado ao clímax de seu envolvimento, mas murchou rapidamente com a última afirmação.
— Amor não conquista tronos, ele os destrói. Olhe o que fez com Troia!
— Caro ancião, não estamos falando do mesmo tipo de amor. E me custaria muito para explicá-lo. Acontece que Cristo veio estabelecer um reino que só poderia ser conquistado com derramamento de sangue, mas não o de outros, apenas o seu próprio. Todos nós, humanos, estamos condenados a viver e jazer no reino da morte. Discorda de tal afirmação?
— O reino dos mortos é o Hades… — O idoso começou a explicar.
— No entanto, nenhum homem passa por esta terra sem ir para lá, correto?O idoso assentiu e o viajante prosseguiu:
— Portanto, todos nós, espiritualmente, estamos condenados a ir ao reino dos mortos ao fim desta curta e passageira jornada aqui na Terra. Isso faz com que todos nós estejamos sob o domínio do Reino da Morte, ainda que vivos.
— Todos os dias estamos mais mortos.
— Perfeito! — exclamou o viajante, sentindo-se vitorioso. — E é por isso que Cristo veio, para nos libertar do poder da Morte. Mas para isso, ele precisava morrer. Lembra-se do que eu disse? Ele nasceu de maneira milagrosa? — O idoso concordou. — E teve uma infância comum. Portanto, como nós, ele enfrentou a vida comum e mortal, com todos os seus desafios. Mas, diferentemente de nós, Cristo nunca falhou moralmente. Nunca fez nada que Deus, seu pai, considerasse errado. Portanto, ele era perfeito, mas acredite, ele foi crucificado, juntamente com ladrões da pior estirpe.— Isso é injusto… — afirmou o ancião, balançando a cabeça em negação.
— Por isso ele venceu a morte. A destruiu com suas próprias regras. Sabemos que toda lei tem uma condenação e punição em caso de transgressão. E, na lei de Deus, o pecado é punido com a morte.
— Mas Jesus não pecou! — O ouvinte protestou.
— Acertou em cheio — afirmou o viajante, sorrindo. — Ele morreu para pagar pelos nossos pecados, assim, nós não precisaremos morrer.O ancião ficou em silêncio, tentando digerir tudo aquilo. Seus dedos impacientes tremulavam contra o braço de seu majestoso assento de mármore. Na parede, afrescos coloridos ilustravam as lendas de seu panteão, e sobre os móveis, seus ídolos de mármore decoravam o salão.
— Mas então, o seu Deus morreu? Que catástrofe! — perguntou, depois de sintetizar as ideias.
— Sim, isso é catastrófico! — O viajante concordou com eloquência. — É uma Eucatástrofe2. Você é fluente em grego e sabe que isso significa uma “Boa Catástrofe”.
— E pode uma catástrofe ser boa?
— Sim, se ela colaborar para um final feliz. Ela é o divisor de águas entre o momento em que tudo dá errado e quando tudo dá certo ao mesmo tempo. Quando Jesus morreu, jazendo sem vida sob um céu de chumbo, seus poucos discípulos sepultaram seu corpo em um sepulcro. Acontece que seu Espírito desceu ao reino dos mortos e encarou a morte face a face. Mas nisso estava a Eucatástrofe: aquele que não pecou não merecia a condenação da morte, portanto, não deveria estar ali.— E então?! — Perguntou o idoso, quase endireitando as costas e colocando-se em pé.
— Ele venceu a morte e ressuscitou.
— Loucura! Loucura! — disse o idoso, brandindo os braços no ar.
— É, eu sei. Tudo é inacreditável. Aquele bebê, num berço de palha, repousando sob as estrelas que ele mesmo criara e havia visto de perto, agora estava pronto para morrer por nós trinta e tantos anos mais tarde… O Evangelho traz consigo uma irônica fragilidade. Ao olharmos para o Deus da Bíblia e para sua criação, veremos algo grandioso e majestoso. Mas naquela noite, ao nascer, Jesus nos revelou o relacionamento íntimo e próximo que o Criador tem conosco, ao interagir diretamente e presencialmente com a criação. Ele veio à Terra para sujar os pés de lama e as mãos de sangue e nos resgatar.O idoso tinha os olhos arregalados, como se ouvisse algo chocante e ofensivo contra si mesmo. O viajante concluiu:
— Uma pena que todos nós, naqueles dias, éramos muito sábios para crer nessa loucura. Ou, felizmente, fizemos isso; do contrário, Deus não teria convertido essa catastrófica história em algo bom para nós. A boa catástrofe trazida por meio dessa boa nova é que, para os que crerem nesta aparente loucura, há salvação da lógica da morte estabelecida pelo pecado.
1 Ágora: Praça principal das antigas cidades gregas, local que servia para a realização das assembleias do povo.
2 Eucatástrofe: Do grego Ευκαταστροφή [eu (bom) + katastrofí (queda/desfecho)]. Termo cunhado pelo escritor britânico J.R.R. Tolkien para descrever um desfecho repentino e feliz em uma narrativa. Diferente da tragédia nos dramas clássicos, a eucatástrofe não culmina em uma derrota definitiva, nem em um triunfo previsível do bem, como ocorre nos contos de fadas tradicionais. Em vez disso, ela envolve um mal necessário que conduz a uma reviravolta inesperada, onde o bem triunfa, proporcionando uma alegria redentora após momentos de aparente derrota.