Os olhos da garotinha reluziam diante do brilho dourado do Grande Leão, imenso e majestoso, o qual parecia emanar cada vez mais luz a cada sopro de vida que concedia. Ao lado de Lúcia, Susana observava a cena, carregando consigo a inquietação própria de quem já começa a conhecer as complexidades do mundo.
Aslam movia-se com uma graça tão poderosa, agitando sua juba de um lado ao outro, que o ar parecia se encher de uma música que só os corações mais atentos poderiam ouvir. Com seu sopro, ele trazia de volta à vida criaturas que haviam sido cruelmente petrificadas pela Feiticeira Branca. Cada forma endurecida – cavalos, faunos e até pequenos ratos – tornava-se novamente carne e osso. Os olhos opacos eram substituídos por expressões vivas, e os corpos antes imóveis começavam a se mover, hesitantes, como se despertassem de um longo pesadelo.
Porém, quando o Leão aproximou-se dos pés de um gigantesco colosso de pedra, ambas as meninas estremeceram. Enquanto a irmã mais nova contemplava com pura alegria a cena diante delas, Susana, por sua vez, franziu o cenho, sentindo o peso de um misto de admiração e dúvida. O sopro de Aslam começou a mover-se do chão até os pés massivos do gigante, que começaram a perder a rigidez e a ganhar cor.
— Olhe… Você acha que… que isto é seguro? — perguntou Susana, com a voz baixa, como se temesse interromper o momento.
Lúcia, contudo, mal a ouviu. Estava extasiada. Seus olhos fixaram-se no gigante que agora balançava os dedos dos pés, ainda meio confuso.
— Está tudo bem! — anunciou Aslam, com um rugido alegre que parecia encher de calor até o coração mais frio. — Quando os pés estão corretos, todo o resto os acompanha.
— Não era isso que eu estava querendo dizer… — murmurou Susana, desviando o olhar para Lúcia, como se esperasse que a irmã entendesse sua apreensão.
Mas Aslam já não parecia ouvir. Ou será que ouviu? Talvez ele entendesse tudo o tempo inteiro, mas escolhesse responder de um jeito diferente. Talvez não fosse Aslam quem não entendia. Talvez, apenas talvez, fosse Susana quem ainda precisava aprender a compreender.
…
Talvez você não tenha lido essa cena exatamente como a narrei, pois está contada sob outra perspectiva. Entretanto, o contexto dela não deve ser estranho. É uma história que ecoa em cada um de nós, apenas narrada de outro ângulo.
Em As Crônicas de Nárnia, o protagonismo das aventuras é dividido entre crianças de idades e temperamentos variados. Algumas já estão à beira da adolescência, enquanto outras ainda vivem na pureza da infância. Entre elas, Lúcia se destaca. Sua trajetória é conduzida por uma qualidade que raramente sobrevive ao crescimento: uma fé inabalável. Ela não é a mais forte, nem a mais sábia ou a mais experiente; mas, em sua infância, carrega algo que a torna singular: a capacidade de acreditar profundamente, mesmo quando todos ao seu redor hesitam.
Em O Leão, a Feiticeira e o Guarda-Roupa, Lúcia é a primeira a atravessar o portal para o mundo mágico de Nárnia, ao entrar em um guarda-roupa que, aos olhos de qualquer adulto, seria apenas um móvel comum. Sua descoberta a transforma na mensageira de um mundo novo, mas sua tarefa não é fácil: convencer seus irmãos de que o que vivenciou não foi um devaneio infantil. Sua fé naquilo que viu é tão genuína que a torna a chave para o Reino. Essa confiança quase instintiva reflete a simplicidade da fé de uma criança, pois ela crê com a simplicidade de quem não exige explicações complexas para a realidade que experimenta.
Lembro-me da lógica dos desenhos animados de minha infância, como quando o Papa-Léguas ou Pernalonga, caminhavam pelo ar sustentados por uma lógica absurda, mas que fazia sentido para mim: “Basta não olhar para baixo!”. O que poderia ser mais lógico do que isso? Na infância, o limite entre o possível e o impossível era ditado mais pela imaginação do que pelas leis do mundo físico. Da mesma forma, parecia perfeitamente plausível que um guarda-roupa pudesse levar a outro mundo. Havia algo puro nesse acreditar: uma confiança despretensiosa que não precisava de justificativas.
No entanto, conforme crescemos, a necessidade de racionalizar tudo se torna um fardo. Queremos nomear o inominável, dissecar o inexplicável, como se toda beleza devesse ser traduzida para a linguagem da lógica. Não há nada de errado em buscar entender o mundo, mas é perigoso quando o ceticismo nos rouba a capacidade de nos maravilharmos com as dádivas misteriosas da realidade.
Crianças não acreditam em tudo de forma ingênua; na verdade, elas têm um senso crítico instintivo e uma curiosidade que nos coloca em xeque. Quando damos respostas improvisadas às suas perguntas, elas rapidamente nos desarmam com mais questionamentos. Sua busca pela verdade é genuína e, de certa forma, mais honesta que a de muitos adultos. Quando eu via os personagens dos desenhos caminharem no ar, sabia que não poderia tentar imitá-los na beira de um penhasco, mas ensaiava no sofá, onde a queda era segura. A curiosidade era minha guia, mas não a crença cega — apenas a vontade sincera de testar os limites da realidade que conhecia.
C.S. Lewis, em seu ensaio Como Escrever Para Crianças, diz que, se ao amadurecermos perdemos as virtudes que possuíamos na infância, não progredimos; retrocedemos, pois que, se perdemos as qualidades mais puras da infância, então não evoluímos de fato. Essa ideia ecoa a tensão que muitos de nós enfrentamos: como equilibrar a racionalidade com a capacidade de acreditar no invisível? A verdade é que há uma diferença entre crer e ser crédulo. Não devemos abraçar toda fantasia que nos é apresentada, mas também não devemos endurecer nosso coração a ponto de tornar a vida árida e sem cor.
No Evangelho, vemos um momento semelhante quando Jesus convida Pedro a sair do barco estável e caminhar sobre as águas bravias da tempestade. É um convite que desafia tanto a lógica quanto o medo. Pedro dá o primeiro passo, mas, ao olhar para as ondas, começa a afundar. A lição não está apenas no milagre, mas no convite: confiar no que não vemos, enquanto mantemos os pés firmes na fé.
O “crer”, em sua essência, navega entre dois extremos perigosos: o racionalismo endurecido, que reduz a fé a um exercício puramente intelectual, e o fideísmo cego, que abandona toda razão em nome de uma confiança sem fundamento. Nosso desafio é encontrar o equilíbrio: sermos racionais o suficiente para compreender a razão da nossa esperança e fiéis o suficiente para confiar nela, mesmo quando as respostas não estão à vista. Quando o Aslam nos convida a colocarmos os pés em um solo incerto, o que você faz? Olha para baixo e afunda, ou mantém os olhos fixos n’Ele e segue em frente?
Felizmente, como toda criança, a pequena e pura Lúcia teve de crescer e atingir a idade de Susana, a qual também amadureceu. Ambas passaram por idas e vindas à Nárnia até que, seguindo a palavra de Aslam, nunca mais retornaram ao mundo mágico. Contudo, a história de todos os irmãos Pevensie (eles eram quatro ao todo) sempre giraria em torno daquele lugar, por bem ou mal. À medida que Susana crescia, amadurecia à maneira que a maioria de nós compreende esse conceito: deixava de ser uma criancinha tola que brinca em mundos mágicos com leões falantes, aproximando-se mais dos assuntos “sérios”. Romances maduros, pessoas intelectuais, maquiagens, roupas caras e festas começaram a ocupar o lugar que antes pertencia aos sonhos e aventuras da infância.
Seus outros irmãos também cresciam. Pedro, o Grande Rei, dedicava-se agora aos estudos universitários, preparando-se para exames importantes. Edmundo, que um dia havia sido um traidor em Nárnia antes de redimir-se e tornar-se um rei sábio, enfrentava seus próprios desafios no mundo real. Eustáquio, o primo que outrora fora insuportavelmente incrédulo, havia experimentado sua própria transformação em herói nas aventuras ao lado de Jill. Lúcia, agora crescida, não havia se esquecido do país mágico de sua infância. Apesar de viverem neste mundo comum, todos os irmãos, com exceção de Susana, guardavam com carinho as memórias de Nárnia e de Aslam. Sabiam que aquele mundo não era apenas uma lembrança, mas uma realidade que havia moldado quem eram mesmo estando do “lado de cá” do guarda-roupa.
Muitos críticos literários não compreenderam completamente o desfecho de Susanna em “As Crônicas de Nárnia”. O fato é que ela abandonou aquilo que seus irmãos preservaram: a capacidade de crer em algo maior, algo além do que se pode ver e tocar. Antes, preferiu se apegar apenas às coisas deste mundo. Isso, ironicamente, foi o que a manteve viva e fora do acidente de trem que tirou a vida de sua família. Enquanto os demais irmãos Pevensie, já adultos, tentavam retornar a Nárnia para combater um caos que ameaçava consumir aquele universo, Susana estava atarefada, afastada não apenas fisicamente, mas espiritualmente.
Após o acidente, os irmãos de Susana despertaram em um lugar que era ainda mais magnífico do que toda Nárnia. Era o País de Aslam, um mundo que transcende qualquer imaginação, onde o tempo não tem poder e onde todas as dores e perdas são finalmente restauradas. Para eles, o final não foi uma tragédia, mas um começo glorioso. No entanto, Susana, que permaneceu no “mundo real”, teve de lidar com a dor esmagadora de perder todos os seus entes queridos. Sem saber para onde eles haviam ido, ela provavelmente considerou-os simplesmente como “mortos”. E se até o fim de sua existência no “mundo real” não se reconciliou com Nárnia, é provável que jamais tenha reencontrado aqueles que amava, nem contemplado o rosto de Aslam e o esplendor de seu país.
Neste ponto, vocês devem ter percebido que não estou mais falando apenas do livro de Lewis e mundos fantasia, não é mesmo? Ao menos os olhos mais atentos como os de Lúcia conseguiriam compreender isso. Pois ao final de todas as coisas, o mundo mágico que os personagens mais ingênuos daquela história creram veio a se tornar o mais real de todos.