Como Ele conseguiu dormir?

“E levantou-se grande temporal de vento, e subiam as ondas por cima do barco, de maneira que já se enchia. E [Jesus] estava na popa, dormindo sobre uma almofada”. (Mc 4:37-38)

Você já se perguntou: Como Ele conseguiu dormir?
Quando tento imaginar aquele pequeno barco de carvalho balançando violentamente contra as ondas, resistindo ao curso do vento, sempre sorrio, tentando ilustrar nessa cena um homem dormindo na popa, acomodado sobre um travesseiro. Essa imagem parece quase sarcástica. Tente imaginar um naufrágio como vemos nos filmes; nunca é uma cena pacífica. Há agitação, diálogos e muito medo. Os discípulos, obviamente, estavam nessa agitação, lutando para drenar a água antes que o barco se enchesse, mas o líder deles, com aparente indiferença, tentava dormir.

Duas observações importantes: a primeira sobre o barco. Não estamos falando de uma grande galé ou uma caravela, como estamos acostumados a ver nas pinturas de grandes batalhas navais. As embarcações utilizadas por pescadores neste período, principalmente em uma região pobre como a Galileia, eram mais parecidas com uma canoa grande com uma vela no meio. Em outras palavras, poderia encher-se de água e ir a pique rapidamente.

Barco pesqueiro do século I d.C encontrado no Mar da Galiléia

A segunda observação que faço é sobre quem dormia na popa da embarcação: Jesus. Às vezes, olhamos para esta passagem e, vendo-o como Deus, achamos mágico o fato de vê-lo dormindo ali. No entanto, este pode ser um evento mais natural do que imaginamos. Jesus Cristo, o homem, tinha uma rotina fatigante. Você já teve um dia cheio? Ele, em questão, quase sempre tinha dias cheios. Pouco antes neste mesmo capítulo, vemos Jesus ensinando uma multidão durante um dia inteiro, tudo isso acompanhado da maresia, o sol escaldante da Judeia e, muito provavelmente, uma refeição não muito farta (se é que havia se alimentado). Este era o contexto da maioria das ministrações do Mestre.

Mas o que me impressiona não é exatamente o fato de Jesus estar exausto, dormindo na traseira da embarcação, mas o fato de continuar dormindo em meio àquele caos. A primeira coisa que noto em meio a tudo isso é a demonstração do poder de Deus através de Cristo. Ao ser despertado pelos companheiros desesperados, Jesus repreende o vento, quase da mesma maneira que alguém falaria para aquietar seu cachorro que está intimidando uma visita. E ao despertar, indaga aos discípulos do por que haviam incomodado-o para aquilo, sendo que eles mesmos poderiam ter resolvido aquele problema. Dizendo isso com a mesma naturalidade que você diria para seu hóspede sedento que ele pode servir-se de água sem pedir permissão a você.

Contudo, através deste texto, uma outra coisa fica ainda mais clara: nenhuma tempestade é grande o suficiente para inquietar a Jesus. Ainda que o mundo ao seu redor esteja colapsando, Deus tem o controle de toda a situação. Afinal, haveria Cristo de naufragar naquela tempestade e não ir à cruz como era o plano do Pai? Não haveria Ele de viver mais duas Páscoas antes de se entregar ao sinédrio para ser sacrificado em prol da humanidade? Poderia um fenômeno natural como aquela chuva barrar um plano eterno? Creio que não.

Diante dos desafios, devemos nos lembrar de que Deus possui um plano eterno e que sua soberania vai muito além de nosso alcance. O próprio Jó, depois de ser entregue para ser moído e ter sua vida arruinada, ora a Deus dizendo: “Bem sei que tudo podes, e nenhum dos teus planos pode ser frustrado” (Jó 42:2). Esta frase não foi dita em um momento de prosperidade, mas gritada do “fundo do poço”, onde se encontrava.

Como Ele conseguiu dormir? Confiando que Deus não perde o controle da situação quando o barco parece naufragar (e mesmo quando Ele permite naufrague). Nossa submissão à sua vontade depende, primeiramente, de compreendermos que até mesmo no Jardim do Getsêmani, à beira da morte, Jesus Cristo não bradou: “Senhor, eu determino que me livres deste cálice!”, mas gemeu confiante: Pai, seja feita a Tua vontade (Mt 26). E assim aprendemos que, entre a vontade de Deus e um destino glorioso, existe uma cruz, chicotes e espinhos.

4 Comments

  • Maria

    Eu acho muito interessante o fato de que Jesus, que acalmou as ondas inquietas do Mar da Galileia, é o mesmo que disse aos discípulos assustados “Não deixem seus corações se perturbarem”, usando a palavra grega ταράσσω (tarasso), que embora não seja usada para descrever a natureza do mar agitado em Marcos 4:37, é a mesma palavra usada para águas agitadas em João 5:7, na história do paralítico. E é também a mesma palavra que descreve o estado emocional de Jesus quando comovido pela morte de Lázaro (João 11:33). Então Cristo mesmo estava perturbado, inquieto, alarmado, e assim por diante, nesses diferentes significados dessa palavra grega. E fiquei me questionando como isso pode ser possível… Mas claro que não é segredo que o Nazareno que andou sobre as águas era tão humano quanto nós somos, carne e osso (1 João 4: 2), não um fantasma (1 João 1: 1) – os discípulos o tocaram, viram, ouviram. Ao contrário do que a maioria das pessoas pensa, Jesus era totalmente humano, e ele foi tentado como ser humano, sofreu como humano e aprendeu a ser obediente através de seus sofrimentos (Hebreus 5: 8), ele morreu como o pior dos pecadores, na cruz com dois criminosos ao lado dele, ele ressuscitou e foi grandemente exaltado, recebendo um nome que está acima de todo nome (Filipenses 2: 7-9). E mesmo antes de tudo isso acontecer, sua voz ecoa pelas Escrituras: “não deixem seus corações se perturbarem.” Acho incrível que Ele conhece os corações agitados de seus discípulos angustiados no momento de sua partida. Isso me faz pensar que no meio da tempestade que acontece no coração humano, há um homem que conhece todas as dores, que passou por um deserto e acalma tempestades agitadas. No meio das dúvidas que tiram o brilho de uma vida, está o Deus-homem que colore tudo com um arco-íris de promessa. No meio da dor de uma partida inesperada, há um servo que deu sua vida, derramou seu próprio sangue para nos dar vida e esperança para a ressurreição. Ele acalma a tempestade tempestuosa em nossos corações. Ele é um Deus que acalma as tempestades!

    Texto incrível 🔥

    • Olá, Maria.
      Que comentário maravilhoso, eu não havia me atentado para essa profundidade do original.
      A profundidade das escrituras é tão encantadora. E, de fato, Ele é nosso refúgio, nosso ponto de paz.

      Obrigado pela aula 😉
      Deus a abençoe. Abs!

  • Tay

    O Senhor em Sua total e plena Sabedoria e Discernimento, projetou diversos sonhos e planos únicos para nós. Apesar de que às vezes não entendamos o caminho que nos levará às concretizações desses planos, temos que confiar que Ele conhece esse caminho como ninguém e que tais planos que Ele sonhou para nós não virão para o nosso mal.

    Poderíamos utilizar como exemplificação o caso de Abrão descrito em Gn 12:1-4, que ao ouvir a ordenança de Deus para que largasse sua parentela, ele prontamente obedeceu (versículo 4) apenas confiando que os planos do Senhor seriam bons. E, de fato, foram.

    Assim, por que temer o futuro se o Senhor detém-o em Suas mãos? Por que ficamos assombrados quando as tempestades dão “as caras” se o Mestre nos acompanha na embarcação? Vamos com calma, não será preciso recuar, a confiança bastará.

    “Como Ele conseguiu dormir?”, eu diria confiando!

    • Olá, Tay,

      Realmente, o exemplo de Abrão me lembra muito essa questão da confiança. Ele nos lembra muito nós mesmos também, pois ainda que confiamos convictamente nas coisas que Deus faz, ao olharmos as circunstâncias (um idoso sem filhos) lá no fundo nos perguntamos: será que vai dar certo? Mas sempre dá certo no fim das contas. Deus é bom!
      Ótimo ponto. 😮

      Abs!

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Victor Freitas

Rabiscando papéis desde os nove anos vejo na escrita a forma de conversar comigo mesmo, e através dela convido o mundo para participar desse diálogo. 

Reflexivo e poético, me pego explorando o mundo através de suas metáforas. Romantizando as emoções e os desafios que enfrento todos os dias. Um retrato parecido com os roteiros vividos por cada um de vocês.

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