Texto de: Victor Freitas & Lucas Hermes
Termite
O ar-condicionado emitia um chiado minucioso, mas insuportável, que o fazia se perguntar o que estava fazendo ali. Mal conseguia compor a melodia irritante daquele lugar. Além desse ruído, o som abafado dos carros na avenida lá embaixo, da caneta deslizando sobre o papel e da respiração pesada do homem sentado do outro lado da mesa o deixavam inquieto. Preferia o som das caixas de som estalando ao dedilhar a guitarra a ter que enfrentar toda aquela pressão. Mas, afinal, como havia ido parar naquela sala?
Tudo havia começado dias atrás, quando ele explodiu. Algo que não ocorreu sem motivos e, obviamente, não por culpa dele. Era uma terça-feira chuvosa e fria, e a “Termite” estava reunida para mais um ensaio. O dia era pouco propício, mas a banda precisava se reunir, portanto ele havia agendado um ensaio para aquela noite, a maior loucura que haviam feito. Entre acordes e vocais desafinados, havia o baterista, que não acertava o ritmo:
— Que droga, Zé! Você não consegue tocar essa porcaria direito?! – perguntou quando sua paciência chegou ao limite.
O baixista franziu o cenho.
— Hernandes, você desafina toda hora e eu não estou reclamando – retrucou José.
Hernandes era o protagonista do quarteto que havia se unido com um sonho: revitalizar o rock nacional com a banda que surgiu entre amigos da faculdade. O desafio era grande e, após seis anos, continuavam patinando entre o fracasso e a insistência. Seus shows, quando muito, conseguiam agitar a festa de aniversário de algum amigo ou familiar, além de tocar em bares e restaurantes decadentes.
— Eu sou a voz aqui, entende? – respondeu Hernandes, indignado. – Meu trabalho é mais difícil que o seu.
— Então por que você não faz por mim?
— Galera, vamos parar com essa palhaçada! – interveio Júlio, o guitarrista. – Temos que ensaiar mais esta noite. Sábado temos gravação, precisamos acertar os últimos detalhes.
— Se nosso amigo colaborasse, já teríamos terminado – resmungou Hernandes.
— Por que não tenta vir falar isso na minha cara? – disse José, estufando o peito. Apesar de baixo, tinha um porte avantajado e braços largos. – É fácil ficar reclamando nesse microfone.
— Parem com isso, já! – exclamou Renan, o baterista, que observava tudo indignado.
— Eu vou parar mesmo! Para mim chega – disse José, abaixando-se para desconectar o baixo da caixa de som. – Estamos fazendo isso há quanto tempo? E nunca dá certo. Nunca chegamos a lugar nenhum e eu não aguento mais!
— Como assim? – perguntou Hernandes.
— Não entendeu, cara? Eu tô pulando fora da sua bandinha. Essa coisa aqui já consumiu muito meu tempo.
Os dois espectadores daquela discussão se entreolharam. Por um instante, pareciam satisfeitos com a resolução pacífica. José pegou a guitarra e se apressou em direção à porta da garagem.
— Zé, volta aqui! Nós precisamos terminar o ensaio – disse Renan. Mas já era tarde, a porta já explodia atrás do guitarrista.
Hernandes não conteve a fúria. Em passos apressados, caminhou na direção das caixas de som e, cheio de raiva, enfiou o pé com força contra o alto-falante, arrebentando a grade de plástico e destruindo o equipamento contra a parede.
— Que droga! – disse, insistindo em dar mais alguns chutes na caixa.
— Cara, para com isso! – Os amigos correram em sua direção para segurá-lo e acalmá-lo, mas levou algum tempo para que ele retomasse o controle da sanidade.
Quando finalmente conseguiu retomar a consciência, estava envergonhado e com muita dor no pé.
— Deem o fora daqui! – disse para os amigos. – Eu tô cansado, vocês também, e não vai dar pra continuar sem baixista.
— A gente vai falar com ele… Vamos nos acertar – disse Júlio, colocando a mão no ombro do amigo.
— Não vamos, não. Eu também estou fora – anunciou Renan.
— Sério? Mas eu nem te falei nada – disse Hernandes, surpreso.
— Hoje não, mas já faz um tempo que você está pegando no pé de todo mundo. Cara, pelo seu bem e pela nossa amizade, precisamos dar um tempo.
Hernandes assentiu, confuso, contrariado, mas acatou o conselho do amigo. Caminhou na direção do sofá e deixou o corpo cair no assento.
— Está ficando tarde – disse Renan. – A “batera” fica aqui por enquanto, mas se estiver atrapalhando, me liga que eu passo de carro para buscar.
Não houve resposta, portanto o baterista apressou-se para sair, deixando a porta entreaberta atrás de si. A noite entrou pela fresta, trazendo o vento gelado do quintal e um brilho prateado da lua.
A pequena garagem agora parecia vasta. Apenas Júlio havia permanecido, em pé, entre a porta e o sofá, dividido entre os que se foram e o amigo que ficara. Hernandes, ainda com a respiração pesada, encarava as caixas de som destruídas, resultado de sua explosão de raiva. Júlio, parado próximo à porta, cruzou os braços, tentando digerir o que tinha acabado de acontecer.
— Isso foi loucura — disse Júlio, com a voz baixa, quase como se falasse sozinho.
— Não começa — resmungou Hernandes. — Eu não aguento mais, cara.
Júlio suspirou e deu alguns passos para dentro, ainda relutante em se aproximar muito.
— Não sei o que tá acontecendo contigo, mas dá pra ver que isso já tá te consumindo há um tempo. O que foi aquilo? Destruir equipamento? Cara, a gente tá quebrado e agora… mais uma caixa de som pra consertar.
Hernandes esfregou as mãos no rosto e suspirou, sentindo o peso das palavras de Júlio.
— Eu sei, foi uma idiotice. Mas você também viu, né? Zé sempre foi cabeça-dura, ele tava me provocando.
— É, talvez. Mas, se for assim, você também tava – Júlio largou a guitarra no suporte, aproximando-se mais. – Olha, eu entendo que é frustrante. A gente tá tentando há anos e não sai do lugar. Mas essa pressão que você coloca em todo mundo… tá destruindo a banda, mano. Tá destruindo você.
Hernandes ficou em silêncio, observando o ventilador da garagem girar devagar.
— Eu só queria que as coisas dessem certo… — sua voz soou abafada pela vergonha. — Só queria que o som fosse perfeito, que a gente… sei lá, que a gente chegasse a algum lugar.
Júlio suspirou. Ele conhecia aquele sentimento. Mas sabia que a solução para Hernandes não estava apenas na música.
— A gente também quer — Júlio sentou-se ao lado dele. — Mas não é assim que vai acontecer. Olha só o que aconteceu hoje. O Zé saiu, o Renan tá fora… E, sinceramente, não sei se tô muito longe disso também.
Hernandes virou o rosto, surpreso com a confissão do amigo.
— Você também?
— Não é isso. Não quero largar. Só tô dizendo que, do jeito que tá, não dá pra continuar. Eu tô preocupado contigo, cara. Tem algo a mais nessa história, né?
Por um momento, Hernandes não respondeu. O som dos carros passando pela avenida distante era a única coisa que quebrava o silêncio. Quando finalmente falou, sua voz saiu num fio:
— Eu não sei mais quem eu sou, Júlio. Antes, a música era tudo pra mim. Agora… não consigo mais nem compor. Parece que nada faz sentido.
Júlio ficou quieto, deixando as palavras do amigo ecoarem pela garagem vazia.
— Sabe, o Renan e o Zé tão cansados. Todo mundo tá. Mas, cara, eu vejo que tem algo maior aí… Talvez a gente precise de uma pausa. Pra respirar, pensar um pouco. Talvez você precise falar com alguém, sabe? Tipo um psicólogo, guru, sei lá…
Hernandes soltou uma risada amarga.
— E o que eu vou falar? Que eu tô quebrado? Que eu não aguento mais essa vida?
— Se for isso, então é isso mesmo. — Júlio deu de ombros. — Todo mundo tem seus próprios problemas, mas não dá pra deixar eles engolirem a gente. E, às vezes, falar ajuda. Você conhece a história do Zé, do Renan… Eles tão tentando também.
Júlio caminhou até a mochila jogada no canto da sala. Pegou uma folha de papel amassada e voltou, estendendo-a para Hernandes.
— Olha, eu conheço um cara. Ele é terapeuta. Já falei com ele uma vez, quando minha cabeça tava uma bagunça. Não custa nada tentar, né?
Hernandes olhou para o papel sem pegá-lo.
— E você acha que isso vai mudar alguma coisa?
— Eu não sei — disse Júlio, com um sorriso leve. — Mas ficar aí quebrando caixa de som e surtando com a galera todo dia certamente não vai.
Hernandes pegou o papel com relutância, mas sem resistência. Júlio deu-lhe um tapinha no ombro e se dirigiu à porta.
— Pensa com calma, mano. A gente não tá te abandonando. Só precisamos de um tempo. Todo mundo.
Com um último olhar para o caos da garagem, Júlio saiu, deixando Hernandes sozinho.
Essência
Uma semana depois, lá estava ele, ouvindo o ruído do ar-condicionado e encarando aquele homem enigmático. Eu sou um fracasso, disse para si.
— Prazer, Dr. Vilson Bernardes. Pode entrar, senhor… — ele olhou para a prancheta antes de retomar o tom profissional — Marcos Hernandes Ferreira.
Ele se sentou na poltrona indicada pelo doutor.
— Me chamam de Hernandes — disse, num tom baixo, ríspido, quase misterioso. Talvez até amedrontador, diriam alguns.
— Certo, Hernandes. Pode me contar um pouco da tua história até aqui? Se preferir, podemos começar de outra forma. Estou aqui para ajudar.
Hernandes foi duro, pouco receptivo às tentativas de Vilson de iniciar a conversa. O terapeuta, percebendo a resistência, mudou a abordagem: deixou que Hernandes fizesse as perguntas. E ele fez muitas. Diversas delas questionando a competência de Vilson. Curiosamente, aquele homem era receptivo. Havia algo nele que ressoava um ideal. Definitivamente, tinha muito estudo, mas havia algo mais.
Até que Hernandes lançou:
— Doutor… se é que “doutor” é o correto… Como é que, mesmo sem sorrir, você parece estar sorrindo? Tem algo diferente em você. Nunca vi alguém assim. Quer dizer, não entre adultos.
Vilson sustentou o olhar e, com a calma de quem já ouvira aquilo antes, respondeu:
— Bem, eu encontrei meu propósito. E esse propósito vai além desta vida. Acho que bate bastante com os ideais de um artista. Afinal, eu também fui artista quando mais jovem. Escrevia poemas, queria que virassem músicas. Meu propósito é servir, incentivar, inspirar, cativar, cuidar… enfim, é algo complexo de explicar.
— Me conte mais. Como eu sei que tenho um propósito? Como encontro um, se eu não tiver?
— Veja bem, Hernandes… Isso é mais difícil do que parece, mas mais simples do que se imagina. Sabia que já ouvi uma música de vocês?
— É mesmo?
— Sim. Aquela autoral, sobre a matéria… a coisa… Como era o nome?
— Essência?
— Isso! Essa mesma! Vocês falam da subjetividade da existência, da fugacidade dos dias, da frustração do cotidiano. Eu acho genial!
— Você e mais dois gatos pingados.
Vilson sorriu.
— Hernandes, não se preocupe com números. Sabia que Van Gogh não era muito famoso. Sabia que ele copiava quadros?
— Sabia. E sei também que ele não ganhou nada por isso. Só perdeu.
— Talvez tenha perdido em vida, mas seu nome ecoa até hoje. Tanto que nós dois, e quase o mundo inteiro, se não o conhecemos, pelo menos já ouvimos falar dele.
Hernandes ficou em silêncio por um instante.
— Vendo por esse lado… é. Talvez ele tenha ganhado um pouco.
Vilson anotou algo no caderno.
— Próxima quinta, então?
— Claro! Estarei te esperando. Só lembrando que a próxima sessão já será o valor integral.
— Nenhum desconto?
Vilson ergueu uma das sobrancelhas e encarou o paciente que, após alguns instantes, assentiu.
Religações
Hernandes chegou mais cedo ao consultório, desta vez com um caderno surrado debaixo do braço. Dentro, rabiscadas às pressas, estavam letras de músicas que ele havia abandonado ao longo dos anos — pedaços de sonhos esquecidos. O ambiente era o mesmo de sempre: o chiado irritante do ar-condicionado e o som abafado do mundo lá fora. Mas algo estava diferente. Ele próprio estava diferente.
Assim que o Dr. Vilson o recebeu, Hernandes entregou o caderno sem dizer nada. O terapeuta folheou as páginas com cuidado, como quem manuseia algo precioso.
— “Essência”… — leu Vilson em voz baixa. — Essa foi a que mencionamos na última consulta, não foi?
Hernandes assentiu, um pouco envergonhado.
— Achei que estava na hora de trazer isso pra mesa. — Respirou fundo. — Acho que perdi o propósito porque parei de ouvir a essência. A música… o porquê de eu ter começado.
— E agora? — perguntou Vilson, fechando o caderno e devolvendo-o. — O que você acha que deve fazer?
— Acho que preciso recomeçar. Mas, desta vez, por mim. Não pelos aplausos, não pela aprovação de ninguém.
Vilson sorriu, aquele sorriso calmo e quase imperceptível de sempre.
— Sabe, Hernandes, não posso me intrometer. Inclusive, nem sou tão ligado ao rock… Mas a gente sempre ouve histórias assim. Grandes bandas formadas por amigos que terminam em guerra. Sempre lembro dos Beatles, da briga do Paul com o Lennon… E sei que várias outras passaram por isso. Será que vale a pena perder algo tão importante?
— Fique tranquilo, doutor. Saindo daqui, farei alguns telefonemas.
— Isso já é um bom começo. — Ele fez uma pausa, observando Hernandes com atenção. — Você sempre teve a essência. Talvez só precisasse se lembrar de onde a guardou.
Hernandes saiu do consultório naquela manhã sentindo-se mais leve. Não porque todos os seus problemas tivessem desaparecido, mas porque, pela primeira vez em muito tempo, ele sabia por onde começar. Pegou o celular e discou alguns números. Tentou uma, duas vezes… na terceira, foi atendido:
— O que você quer? — resmungou a voz do outro lado da linha.
— Fala, Zé. Sei que ainda deve estar zangado… Nem quero ficar de papinho. Mas já faz um tempo que não nos falamos, e eu queria pedir desculpas pelo que rolou naquela noite.
— Meu chapa, qual é? Não conseguiu achar outro pra pôr no meu lugar? — o amigo rebateu, contrariado.
— Não, cara, não é isso. De verdade mesmo. Se não quiser voltar pra banda, tudo bem. Só quero te pedir desculpas.
Houve silêncio. José demorou um instante para digerir aquelas palavras.
— Tá certo, Hernandes… Tá certo. Essas coisas acontecem.
— Mas… você me desculpa? — Hernandes insistiu.
— Sim, cara, te desculpo — Zé finalmente respondeu, quase como se estivesse desengasgando. — Somos amigos. Não podemos deixar essas coisas afetarem. Agora, preciso voltar pro trampo, afinal, ainda não estamos ricos, né? — concluiu com uma gargalhada.
— Ainda não — Hernandes concordou. — Mas estou com uns projetos. Aparece lá em casa amanhã pra gente conversar sobre isso.
— Fechado, mano. Mas só se você prometer não ser um mala de novo.
Hernandes riu.
— Combinado!
Horizontinos
O tempo passou. As ligações e reconciliações aconteceram. A Termite foi reformada. Eles começaram a compor suas próprias músicas, reencontrando o prazer de tocar juntos. A amizade parecia restaurada. E, por um tempo, tudo deu certo.
Mas nem tudo que reluz é ouro.
A carreira musical, agora levada a sério como profissão, começou a corroer os laços novamente. Pequenos atritos viraram grandes desentendimentos. Hernandes e os outros perceberam que estavam trilhando o mesmo caminho de antes. A diferença? Desta vez, sabiam o que era mais importante.
Vinte anos depois do fim definitivo da Termite, Hernandes olhava, nostálgico, para um álbum de fotos. Página por página, revivia aqueles momentos com os amigos, com a banda, com a música. Ao seu lado, seus filhos observavam atentos.
Com os olhos marejados, ele foi interrompido pelo mais novo, de apenas dez anos:
— Pai, o que foi? Tá tudo bem?
— Saudades, filho. Saudades e orgulho.
— Mas, pai… pelas histórias que você contou, até o tio Zé continua seu amigo. Meu sonho é ter amigos como os seus.
Hernandes sorriu.
— Ah, meu filho… Não é saudade deles. É saudade daquele tempo, sabe? Mas não se preocupa… Você ainda não entende.
Antes que o menino pudesse responder, a campainha tocou. Hernandes espiou pelo olho mágico.
Do lado de fora, um pequeno grupo de jovens esperava. Ele reconhecia alguns rostos, mas um deles era inconfundível: o melhor amigo de seu filho mais velho. Hernandes abriu a porta e chamou pelo garoto.
— Edu, vem logo! Tem uma galera querendo falar contigo.
Mal terminou a frase, e Eduardo já descia as escadas correndo. Trazia uma mochila nos ombros — Hernandes tinha certeza de que era uma mochila de pratos de bateria.
Pai e filho se abraçaram com força. Hernandes sussurrou algo ao ouvido do menino. Edu sorriu, virou-se para os amigos e disse, com a empolgação da juventude:
— Claro, pai! Agora esse sonho é nosso! Pra cima, Horizontinos!
Enquanto o grupo entrava na van, Hernandes gritou:
— Não! Não é mais meu! É de vocês! Vão com tudo, gurizada!
Edu parou antes de subir.
— Pai… Que tal ensaiarmos juntos nesse fim de semana? Chama o tio Zé e os outros!
Hernandes riu.
No final de semana, boas risadas foram dadas. Além da música, novos laços foram firmados, e velhos sonhos, resgatados.
Na segunda-feira, o presente o chamava de volta: consultas, pacientes, uma vida que seguiu adiante. Mas, agora, Hernandes sabia que alguns sonhos nunca morrem — eles apenas mudam de dono.