Quando Ele me Amou – Capítulo 1

A rua estava escura e molhada naquela noite de outono. As poças espalhadas pelas calçadas irregulares reluziam sob o brilho alaranjado dos postes. A chuva fora intensa, acompanhada de muito vento. Mas agora, o céu cinzento e as gotículas na janela eram tudo o que restava daquele caos. 

Ela gostava da janela. Sempre sentava-se ali no fim da tarde para observar o mundo que rodeava seu lar. A cadeira ficava estrategicamente posicionada na extremidade esquerda da sala, permitindo que seus olhos cobrissem desde a esquina, cinco casas à frente, até a entrada de seu prédio. Em dias normais, na hora do rush, havia muita movimentação por ali, algo que ela gostava de assistir. 

Sempre haviam pessoas voltando do trabalho, crianças retornando da escola, ônibus lotados de histórias e o bar próximo da esquina, que abria todos os dias da semana, apesar de ter um movimento melhor nos fins de semana. 

Não era um bar muito sofisticado, mas também não era tão simples. Sua fachada era discreta, com mesas na calçada, um letreiro luminoso e janelas espelhadas. Às sextas-feiras, tocavam música ao vivo, o que tornava o lugar convidativo. Nestes dias, a fila para entrar era grande, e ela gostava de observar o público. Trios de garotas solteiras, com roupas curtas e sorrisos no rosto, grupos de caras bonitos empolgados por uma cerveja e uma paquera, e ocasionalmente um casal em busca de descontração. As risadas, em certos momentos, ecoavam pela rua até sua janela, dando um pouco de vida àquele lugar tão entediante. 

Mas hoje era terça-feira, e a chuva havia colaborado para afastar a clientela. Se houvesse dois ou três lá dentro, seria muito. 

O restante da rua permanecia em silêncio. Pouco a pouco, no prédio da frente, os moradores começavam a retornar de sua rotina de trabalho e as luzes começavam a ser acesas. Primeiro da sala, depois do quarto, e por fim as do banheiro. Ela já conseguia discernir se a pessoa morava sozinha ou em família. Os solteiros apagavam as luzes ao deixar os ambientes, mas as famílias deixavam tudo aceso. 

Estava tão entretida em observar que quase não notou quando o táxi parou em frente ao seu prédio. Ela morava no quinto andar, então sua visão para baixo era limitada. Mas lá estava ele, chegando após mais um dia vencido. 

Saltou do táxi cansado, mas aliviado. Mais um dia difícil havia chegado ao fim. Pagou o taxista com uma nota de vinte e deixou-o com o troco. Estava com pressa, só queria chegar em casa. Subiu o lance de escadas e adentrou o hall, cumprimentando o porteiro às pressas: 

— Boa noite – disse com um sorriso no rosto. 

— Boa noite, Sr. Clinton. Como vai? 

— Ótimo e vai melhorar ainda mais – respondeu com entusiasmo enquanto esperava o elevador abrir a porta. 

Embora estivesse descendo do terceiro andar, a demora dava a impressão de que estava vindo do vigésimo. Quando a porta se abriu, um cheiro doce preencheu o ar. Lá dentro uma bela mulher, alta, magra, de cabelos cacheados e rosto agradável saiu em passos delicados. Ao vê-lo, lançou um sorriso e cumprimentou-o: 

— Boa noite. 

— Boa noite – respondeu o homem, tentando ser simpático, mas sem parecer convidativo. 

Já havia visto a moça algumas vezes nesses encontros de elevador. Nunca conversaram muito mais do que isso, mas com o tempo ele concluiu que era um pouco mais jovem que ele e morava sozinha. Ela sempre foi simpática com ele, uma convivência normal entre vizinhos. Mas, às vezes, ele achava que havia algo mais por trás daqueles sorrisos e olhares quando ficavam um pouco mais de tempo no elevador. Às vezes, a moça até tomava a iniciativa de puxar algum assunto. No entanto, como um homem casado que se dá ao respeito e que ama sua mulher, ele lutava internamente para não demonstrar qualquer interesse e tentava encerrar o assunto rapidamente. Para alguns, uma aliança na mão esquerda não dizia tanto quanto deveria. No entanto, para ele, aquele símbolo tinha um valor inestimável. 

Entrou no elevador e apertou o número “5”. Quando as portas se fecharam, aquele cheiro embriagante do doce perfume feminino continuou no ar. Lutou contra sua mente para não trazer à memória os profundos olhos escuros da moça que há pouco o encarara. Tentou transformar o pensamento no belo rosto de sua própria esposa, mesmo que o perfume não fosse o mesmo. O dela era mais intenso, mais agradável; logo, as portas se abririam e ele poderia senti-lo novamente. 

Suas tentações, embora difíceis de serem vencidas, sempre findavam nela. Embora houvesse muitas mulheres atraentes no mundo, algumas até mais do que sua esposa, nenhuma delas fazia seu coração bater no ritmo que batia ao vê-la. Seus traços suaves, a maneira de sorrir, as conversas interessantes, eram coisas que nenhuma outra no mundo poderia lhe proporcionar. Ele a amava, algo que alguns jamais conseguiriam entender. 

No escritório, conhecia muitos homens que se relacionavam com mais de uma mulher, e alguns inclusive eram casados, algo reprovável. Em sua perspectiva, eles viviam pelo instinto, como os animais. Sem sentir nada pelas pessoas que os atraíam além de um impulso hormonal que os aprisionava àquela situação reprovável de trair os sentimentos de alguém para satisfazer o próprio prazer. Ele concluía que amar era infinitamente melhor do que isso. 

Finalmente, um toque e a porta se abriu. Tantas vezes cruzaram aquela porta juntos, ele sempre segurando-a para que sua amada saísse primeiro, e sorrindo, caminhavam de mãos dadas pelo hall iluminado em direção ao apartamento 53: o seu lar. 

Lembrou-se por um instante da primeira vez que haviam feito aquilo, há cerca de um ano, quando retornaram do aeroporto ao fim da lua de mel. Estavam tão apaixonados (e cansados) que só queriam cruzar a porta e inaugurar a sua própria casa. O olhar radiante dela naquela tarde ficou eternizado em sua memória. 

Ao abrir a porta, a estreita sala estava parcialmente escura, mas lá estava ela, sentada à luz da televisão, próxima à janela. 

— Boa noite, amor, estou de volta! – disse, deixando a porta bater atrás de si. 

— Boa noite, querido – Grace virou-se para trás, lançou-lhe um sorriso, mas logo voltou-se para a janela novamente. 

Joshua pendurou a bolsa, tirou os sapatos e cruzou a sala em sua direção. Apoiou uma das mãos em seu ombro, e Grace virou-se para dar-lhe um rápido beijo. Ela não estava perfumada, um detalhe tão pequeno, mas que teria sido tão relevante. 

— O que você tanto procura nesta janela? – perguntou com curiosidade. 

— Gosto de apreciar o pôr do sol. 

— Mas hoje choveu à tarde toda! – exclamou. 

— Mesmo com a chuva, cada dia tem seu charme.  

— Gosto da forma como você vê o mundo. Eu ia dizer que era só mais um entardecer chuvoso. 

— Com chuva ou sem, tem muita coisa acontecendo lá fora, Josh – ela comentou desviando os olhos para a rua. 

— Eu que o diga! Pegamos um trânsito para cruzar aquela ponte hoje, acredita? Achei que nunca fosse chegar em casa… – Joshua sentou-se, pronto para desabafar sobre tudo que havia acontecido em seu dia. – Aquela reforma da ponte parece que nunca vai terminar. É um descaso, não é? Só prejudica quem mora deste lado da cidade! 

— É sim – Grace respondeu com os pensamentos distantes. – Como foram as coisas no trabalho? 

Ele estava pronto para falar e foi o que fez. Contou sobre as tarefas do dia, os problemas, contratempos, as piadas no almoço e alguns comentários positivos do chefe. Entretanto, em algum momento da conversa, notou que ela não estava muito atenta e decidiu encurtar os detalhes para poder perguntar: 

— E o seu dia, como foi? 

— Bem, você sabe, a rotina de sempre, nada muito interessante para contar… 

— Ao menos, nenhum problema – respondeu, acariciando uma de suas mãos. Por mais que quisesse estender o assunto, percebeu que existia algum bloqueio por parte da esposa. Talvez só esteja cansada, pensou consigo. – Bom, irei tomar meu banho para relaxar um pouco. 

— Boa ideia, enquanto isso vou para a cozinha preparar o jantar. 

Ela lançou-lhe um rápido sorriso e observou-o afastar-se na direção do pequeno corredor que levava aos quartos. Quando finalmente sumiu de vista, ela suspirou profundamente e voltou a olhar pela janela. Agora a noite havia caído sobre o mundo, todas as luzes estavam acesas, criando um tom tão convidativo à vida. 

2 Comments

  • Elaine

    Muito bom!👏🏽 Achei a história interessante, ansiosa para ler os próximos capítulos

  • Helenice Ramos

    Anciosa para ler a história, fiquei empolgada, e já acabou o primeiro capítulo.
    Quando vai lançar o segundo capítulo?
    Tia Lê tá anciosa.
    Parabéns e muito sucesso.
    👏👏👏👏

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Victor Freitas

Rabiscando papéis desde os nove anos vejo na escrita a forma de conversar comigo mesmo, e através dela convido o mundo para participar desse diálogo. 

Reflexivo e poético, me pego explorando o mundo através de suas metáforas. Romantizando as emoções e os desafios que enfrento todos os dias. Um retrato parecido com os roteiros vividos por cada um de vocês.

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