Na Contramão do Erro: Guimarães e Aracy Contra o Nazismo

Como fazer o que é certo quando tudo está errado? Ou, melhor ainda, como discernir o que é certo quando tudo o que é errado está sendo chamado de certo? Este é um dilema complexo sobre ética que tem sido muito relativizado em nossa sociedade. Seria a ética natural ou cultural? Até que ponto ela deveria se sobrepor à moral?
    O conceito de moral está ligado a imposições sociais, regidas por normas, convenções e leis que governam uma determinada comunidade, influenciadas pela cultura em que estão inseridas. A ética, por sua vez, visa algo maior; ela está embasada em valores de “bem” e “mal” em um sentido mais amplo e atemporal. Teoricamente, a ética é universal e não está restrita a uma sociedade específica. Portanto, existem coisas que são legais, logo morais, mas não são éticas.
   Ao refletir sobre esses conceitos, sempre me vejo analisando contextos culturais distintos em que uma determinada sociedade aprova certos comportamentos, enquanto em outros lugares seriam considerados extremamente errados. O que é o bem, afinal? O que realmente é bom? Essas perguntas são essenciais para nos questionarmos se estamos fazendo o que é certo, mesmo que todos os outros não estejam.
    Um grande exemplo disso é o que ocorreu há meio século, durante a Segunda Guerra Mundial. Ao longo da história, a Europa vivenciou grandes transformações ideológicas que influenciaram diretamente os conceitos de moralidade e ética nos países que a compõem. Uma das transformações mais radicais foi a ocorrida na Alemanha ao longo da década de 1930 com a ascensão do nazismo.
    Primeiramente, pode-se observar que a própria inserção da ideologia nazista na mentalidade alemã se deu por meio de uma intensa campanha do partido para “desvalorizar” a ética predominante e introduzir novos conceitos para orientar a sociedade em que estava inserida. Por exemplo, enquanto depredar a propriedade alheia é considerado imoral e antiético, para um nazista, essa regra valeria, desde que o proprietário não fosse judeu. Portanto, ocorreu a Noite dos Cristais, um evento em que membros do partido nazista depredaram e incendiaram centenas de casas, lojas e outros estabelecimentos judaicos nas regiões que faziam parte do território alemão.

    Entretanto, essa transformação de valores não ocorreu da noite para o dia; levaram-se anos de intensa propaganda contra os judeus para que o povo alemão passasse a considerar a etnia judaica como um “problema” para o povo ariano, a etnia estimada pelo nazismo como “raça superior”.
    Contudo, mesmo que tenha ocorrido uma certa lavagem cerebral na mentalidade de grande parte dos alemães, não podemos generalizar. Nem todos os alemães eram nazistas, assim como no Brasil contemporâneo, nem todos apoiam o candidato “A” ou “B”, mas se um dos dois está no poder, temos que nos submeter ao que está sendo imposto. No entanto, um pouco de fermento leveda toda a massa, e não demorou muito para que cada vez mais alemães cedessem.
    Mas é em meio a cenários caóticos como estes que vemos aflorar uma certa resiliência. Pessoas que se opõem ao “certo” que está sendo imposto em busca de algo maior, algo que acreditam ser o que de fato é certo. Neste ponto, encontramos diversos personagens que fizeram o que estava ao seu alcance para fazer o bem, mesmo diante de uma oposição tão errônea.
    A brasileira Aracy de Carvalho é uma destas pessoas. Talvez você não a conheça pelo nome, mas já deve ter ouvido falar do autor Guimarães Rosa. Eles trabalharam juntos no consulado de Hamburgo, e dessa relação profissional surgiu um companheirismo altruísta e, posteriormente, um casamento.
    Durante o período em que começaram a trabalhar juntos no consulado, a Alemanha estava no início de seu expansionismo, dando os primeiros passos em direção à guerra. As Leis de Nuremberg, que impunham várias restrições econômicas e sociais aos judeus, já estavam em vigor, e a Noite dos Cristais estava prestes a acontecer. Era um cenário caótico que, no entanto, não deveria lhes importar, pois eram meros funcionários nomeados pelo estado brasileiro para representar os interesses diplomáticos do Brasil diante do Reich Alemão.
    Contudo, com o agravamento da perseguição judaica, o consulado brasileiro começou a receber uma vasta visita de judeus buscando conseguir um visto para imigrar para o Brasil. Aracy era a responsável pela seção de passaportes no consulado, enquanto Guimarães Rosa, como cônsul-adjunto em Hamburgo, tinha o poder de autorizar ou revogar os vistos para ingresso no país. Devido à elevada demanda, o Brasil lançou uma medida para restringir a entrada de judeus no país.
    Diante dessa oposição, Aracy devia carimbar os passaportes de judeus com um “J”. Com essa identificação, o visto seria negado pelo cônsul-geral, superior de Guimarães Rosa. Em outras palavras, por suas obrigações profissionais, ela seria obrigada a não interferir nessa questão alheia. Negando vistos aos judeus, ela os deixaria à própria sorte, tentando imigrar para outro país (situação tão difícil quanto imigrar para o Brasil). Caso não conseguissem, estariam condenados a viver sob aquele sistema opressor.
    No entanto, ela secretamente decidiu desobedecer a essa ordem e facilitar a concessão de vistos para os judeus. Não se sabe ao certo como ela conseguiu essa proeza, pois a própria Aracy nunca revelou, e não há nenhum registro documental que possa comprovar o que de fato foi feito. No entanto, até hoje, muitos judeus que conseguiram vir ao Brasil através de um visto concedido pela embaixada de Hamburgo são gratos a ela por terem conseguido escapar do Holocausto.
   Neste contexto, Guimarães Rosa foi transferido para Hamburgo e passou a supervisionar o trabalho de Aracy. Contudo, em momento algum ele a impediu ou denunciou por desobedecer às ordens impostas pelo Brasil. Ele próprio era conhecido entre os judeus por ser um homem disposto a ajudá-los. Relatos encontrados em seus diários registram a sua desaprovação a Hitler e ao Nazismo, além de denunciar a situação crítica na qual viviam os judeus naquele período. Estes indícios apontam que ele era cúmplice de Aracy nesta missão.
    Eles realizaram um serviço clandestino, colocando o emprego e a própria vida em risco por um propósito maior. Até onde estamos dispostos a defender aquilo que é certo quando a maioria faz o que é errado? Quanto estamos dispostos a nos esforçar por alguém quando uma imposição de um poder maior tenta nos impedir? Podemos fazer o bem, mesmo quando isso é ilegal? Esta é a linha em que a ética confronta a moral.
    Não se sabe ao certo quantos judeus foram salvos da deportação para campos de concentração graças ao visto para o Brasil, pois não era possível manter um registro disso, visto que estavam fazendo algo ilegal. No entanto, existem inúmeros relatos de famílias inteiras que conseguiram deixar a Alemanha graças à interferência deste casal.
   Ao retornarem da Alemanha, com o desenrolar da guerra e o rompimento de relações diplomáticas entre Brasil e Alemanha, casaram-se e seguiram juntos até o fim da vida de Guimarães Rosa. Por outro lado, Aracy ainda viveu muitos anos e foi homenageada no Yad VaShem (Memorial do Holocausto de Israel) como “Justa entre as Nações”, título concedido a não-judeus que se arriscaram para salvar a vida de judeus durante o Holocausto. O título é homônimo de uma crença teológica judaica que define a salvação para não-judeus que fizeram o bem.

Um nome na parede é uma grande honraria, mas fico pensando em algo ainda maior conquistado neste ato. E não falo de uma salvação eterna baseada em obras (o espaço aqui não me permite maior profundidade no assunto), mas falo de uma consciência limpa e uma satisfação inigualável em saber que no fim, sua vida valeu a pena. É a paz ao deitar no travesseiro e saber que, ao menos um dia na sua vida, você não viveu por si mesmo, mas fez algo maior que ajudou outro. O tempo é fatal, só lá na frente, ao olharmos para trás, podemos ver a consequência de nossos atos, mas é imensamente satisfatório acumular  boas obras de amor ao próximo.

Anos mais tarde durante uma entrevista, ao comentar sobre sua experiência como diplomata e seu envolvimento com os judeus, João Guimarães Rosa, cúmplice de Aracy, disse: “Agi como agi… Eu, como homem do sertão, não posso presenciar injustiças”.

1 Comment

  • Tay

    Que história impactante.

    Guimarães e Aracy puderam olhar para trás e ver que, de alguma forma, eles cumpriram a denominada por Tiago como “Lei Real”: “Se cumprirdes a lei real, conforme a escritura: Amarás a teu próximo como a ti mesmo, fazeis bem.” (Tg 2:8)

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Victor Freitas

Rabiscando papéis desde os nove anos vejo na escrita a forma de conversar comigo mesmo, e através dela convido o mundo para participar desse diálogo. 

Reflexivo e poético, me pego explorando o mundo através de suas metáforas. Romantizando as emoções e os desafios que enfrento todos os dias. Um retrato parecido com os roteiros vividos por cada um de vocês.

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